As dez melhores canções de sempre neste preciso momento #8 - Tiago Guillul
· 29 Mai 2008 · 08:00 ·

O culto atrai culto e, mesmo que o atraso da descoberta obrigasse às devidas penitências (inclusive esta), agora é praticamente consensual a constatação de que a identidade de Tiago Guillul era um valor nacional demasiado singular para permanecer circunscrito a um público reduzido que conhecia de antemão os três discos anteriores gravados para a Flor Caveira (gerida pelo próprio). Tiago Guillul, o espírito inquieto afeiçoado à lo-fi, conforme doutrinada por Calvin Johnson e toda a escola K Records, é pastor Calvinista por vocação religiosa e calvinista na forma como transforma cada uma das suas canções em celebração ou confissão caseira (elegia em “Canção para o Rodrigo) conseguida com os meios mínimos, mas obtendo resultados líricos máximos que só escutando dá para acreditar. E aí está Tiago Guillul IV (revisto e aumentado na sua 2ª edição) para comprová-lo com força arrebatadora e firmada em Canções de “C” maior como “Beijas como uma Freira” (que resulta igualmente na versão acústica onde surge despida da produção gospel-rock do original). O fervor atrai fervor e esse pode ser avaliado no blog Voz do Deserto, mantido por Tiago desde há vários anos, assim como na bem-dita lírica que, em IV, cruza tópicos e registos tão dispares e improváveis como a culinária, o contraste cidade-campo, figuras religiosas reanimadas à luz da consciência actual, o festival de trocadilhos e a genial elipse de referências em “Dor de Trono” (faixa bónus). O Bodyspace convidou Tiago Guillul - sempre igual a si mesmo - para uma selecção das suas dez canções predilectas neste preciso momento.


1. "Like You'll Never See Me Again" da Alicia Keys: Claro que grande parte da qualidade da canção passa por, tendo saído da agradável cabeça da Alicia, pertencer, ao fim ao cabo, ao Prince. Dos sininhos infantis iniciais aos derradeiros o-uh-oh-uh-ohs nada há que belisque a negra alvura soul. E se é verdade que hoje não tenho grande paciência para temas sobre desencontros amorosos (a grande doença do songwriting roque-enrole ocidental) consola-me a esperança que a conjugalidade a redima muito em breve destas soluçantes subjectividades.

2. "The Girls Want To Be With The Girls" dos Talking Heads: Céus, 2008 é o meu ano Talking Heads. Fazer a Marginal de manhã ao som dos Talking Heads é a experiência que falta para devolver a esperança ao Ocidente. Os Talking Heads trouxeram joie de vivre cúbica à minha vida. É verdade que o David Byrne tem algo de mefistofélico que não deixa a minha ortodoxia religiosa completamente descansada mas... já vai na "Found A Job", já vai na "Found A Job"!

3. "Oh I Love The Name" do Brooklyn Tabernacle Choir: Por falar em ortodoxia religiosa, cá está uma canção que vindo de Brooklyn não tem nada do geo-hype actual. Isto é gospel contemporâneo, classe-média, repetitivo e radio-friendly. Podemos nós, brancos com cursos superiores e alguns hábitos de leitura, gostar? Como não? Quase que o Espírito já nos pôs a falar línguas.

3. "Barbarella e Barba Rala" do Samuel Úria: Dizer que o Samuel Úria é o maior cantautor (como detesto esta palavra) português vivo só soará exagerado a quem nunca o ouviu. É verdade que é da minha editora, que sou eu que lhe produzo os discos, que fim-de-semana sim fim-de-semana não dorme no sofá-cama do meu escritório e que somos quase família. E então? A vida não pode ser só falhanços.

4. "Water Curses" dos Animal Collective: É óbvio que queria fazer esta lista sem nomear os Animal Collective. Mas nada há a fazer. Cá estão eles.

5. "Fools" dos Dodos: Damn. Tenho de falar dos Animal Collective outra vez. Os Dodos fazem lembrar uns Animal Collective com o Elliott Smith a mandar. Cheia dos tique-tiques e tamboradas que se impõem à época Primavera-Verão 2008 e com uma consistência pop que os levará além da estação. E são só dois, o número perfeito para uma banda.

6. "Pressing On" do Bob Dylan: Esta canção é a versão audiofónica do Memorial do Pascal (uma folha de papel relatando uma experiência mística nocturna que guardava dentro do forro do casaco, descoberta depois da sua morte). Uma coisa é ser dilanófilo (respeitável e intelectualmente tolerável), outra é ter no "Pressing On" um credo (suspeito e definitivamente pouco agregador em termos sociais). O último a ver a luz no nosso país foi o Filipe dos Pontos Negros.

7. "He's Misstra Know It All" do Stevie Wonder: O primeiro preto da lista (excluindo o colectivo Brooklyn Tabernacle Choir). Não se chega ao Stevie Wonder sem mais nem menos. Ajuda ter mais de 30 anos, um passado de lama panque suburbana e, pelo menos, uma leitura diária das Escrituras. Após isto tudo é ritmo, Boa Nova e botão repeat.

8. "Partido Alto" do Chico Buarque cantado pelo Caetano Veloso no disco "Juntos E Ao Vivo": Creio que não gosto muito do Chico Buarque nem do Caetano Veloso. Não tem nada a ver com a falta de qualidades mas antes pelo contrário. Aquele paganismo selvagem sub-tropical... Dá ganas de cristianizar pela violência. Mas recordo o dia em que ouvi esta canção e, lamento os termos seguintes, se operou um reset musical no meu cérebro. Que a música feita na nossa língua em Portugal seja boa apenas por raro acidente só pode ser compreendido a partir do pressuposto que Deus nos amaldiçoou. Enquanto isso, e mesmo que chafurdando em pecados carnais, os brasileiros possuem razões de sobra para cantar com satisfação.

9. "Ching A Ling" da Missy Elliott: A primeira mulher da lista (que por sinal também é preta - não me preocupo com quotas, todavia). A Missy Elliott já fez esta música umas 42 vezes. E nós teremos paz de espírito para ouvir as 42 seguintes.

10. "Dou-te Um Doce Em Troca De Um Beijo Salgado" da Lena D´Água: Dica do João Coração. Como é que, enquanto Nação, nos demos ao luxo de suspender as boas cantigas de Verão? Três meses passam num instante e a perspectiva de concertos no Hot Club a homenagear as velhas divas do jazz é muito pouco animadora.

Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com

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