ENTREVISTAS
Holy Sons
Profecias lo-fi
· 13 Nov 2006 · 08:00 ·
Escutar Decline of the West, o quinto disco de Emil Amos enquanto Holy Sons, é como ter acesso reservado ao debate existencial levado a cabo pela morte, apocalipse e um songwriter mediador obcecado pela missão de harmonizar a relação entre as partes. Pudesse embora tal encargo resultar automaticamente num objecto desastroso, o brilhantismo acaba por se revelar por efeito de ausência de pretensão ou aparato dogmático. Em vez de falar pelas canções que escreve (e, nesta entrevista, fá-lo a título excepcional), Emil Amos cede a margem necessária ao que compõe para que, por intuição espiritual, surja uma base consistente para um conceito adormecido desde o início do processo. A partir de um fértil lo-fi, terreno que Emil cultiva como um acervo de “arte e ensaio”, surgem canções que despertaram esqueléticas, mas que anoitecem preenchidas por uma consistência que delas faz “clássicos ao abrigo de um deus menor”.

Decline of the West será dos melhores discos deste ano nessa flexibilidade acumuladora – a mesma que traça a rota entre o minimalismo da guitarra e voz e uma combustão imensa de feedback e sons recuperados de tapes empoeiradas. Emil Amos será um enorme talento por proclamar nessa arte algo descaracterizada pela actualidade: o puro e bruto lo-fi. Além de engenhoso produtor nos Holy Sons e no último disco de Grails, de que também faz parte. Entre aqui e Portland, trocaram-se alguns e-mails, que muito revelam acerca do processo selectivo que conduziu ao soberbo último disco. Serve esse como pretexto para digressões pelas primeiras experiências musicais do entrevistado, pelo seu apetite natural para gravar todo o tipo de versões e por tudo o resto que partilha Emil ao longo de um discurso tão sincero quanto a sua música.
A longo prazo, em que aspectos acreditas que Decline of the West foi recompensador no desenvolvimento de um maior conforto com determinados métodos e instrumentos? Achas que valeu a pena trabalhá-lo durante tanto tempo? Podia ter sido muito diferente da versão definitiva?

O processo criativo de Decline acabou por me oferecer uma inestimável educação em termos de técnicas de mistura. Porque a mistura deste foi mais complexa do que a de qualquer disco anterior. Conferiu um grande acréscimo à noção do que pode tornar uma canção num objecto “sonicamente apetecível”. Todas as misturas a que me obrigaram o Decline e o Black Tar Prophecies (compilação de três 7 polegadas dos Grail) levaram-me a observar o som a partir de um nível muito mais microscópico. Além disso, agora sinto-me capaz de tecer criticas inéditas e mais completas ao meu próprio trabalho. Ainda me mantenho fiel ao instinto natural de elaborar discos de uma forma desorganizada e pouco calculada, sem paciência alguma para as gravações ou adopção de quaisquer regras... Mas agora “limpo” as músicas de uma forma diferente. Bem vistas as coisas, será melhor aprender algo com o processo de gravação de um disco do que apenas reunir uma colecção de canções que seja “suficientemente boa”.

Agora que mencionas o facto de teres misturado os discos de Grails e Holy Sons em simultâneo, interrogo-me se não terás sentido que algo numa faixa de Grails tenha estimulado uma qualquer qualidade numa música de Holy Sons, que, em circunstâncias diferentes, não teria desabrochado. Não terás pensado:”Esta faixa de Grails parece funcionar acima da duração de cinco minutos – vou acrescentar mais este pedaço a esta outra música de Holy Sons.”? Isso aconteceu?

Geralmente, não estabeleço quaisquer regras no que diz respeito à diferenciação entre o processo de construção de uma canção nos Grails ou enquanto Holy Sons. Só desejo que algo obtenha vida própria e me soe bem. Costumo achar pouco zeloso o facto de Lee Scratch Perry reutilizar tanto material nas faixas de imensos músicos. Ainda me parece evidência de algum desleixo, mas, de quando em vez, é de algum interesse ouvir o mesmo som num enquadramento completamente diferente. Se escutares muito atentamente, repararás que é o mesmo sample de flauta japonesa a flutuar em “Erosion Blues” dos Grails e “Things you do While Waiting for the Apocalypse” de Holy Sons. Mas, em geral, não me quero repetir para continuar a aprender e a evitar o tédio.

Serias capaz de mencionar alguns filmes que influenciaram o disco de forma directa ou indirecta? Eu associaria a sua faceta mais obscura a filmes como Jubilee ou 28 Dias Depois.

Não vi esses dois que referes, mas, durante o último ano, tenho assistido a um filme quase todas as noites e esses influenciaram definitivamente a minha produção. Tenho desenvolvido gosto por ficção-cientifica e as suas bandas-sonoras - a que compôs Gil Melle para Andromeda Strain é fantástica e devia merecer a atenção que se vota a um marco de electrónica abstracta. Algumas das bandas-sonoras do John Carpenter são interessantes pelo seu minimalismo. Apreciei também - pelo tema - filmes como O Sétimo Selo, Badlands e Logan’s Run.

Quase se parecem as diversas tentativas de alinhar o disco com diferentes montagens de um filme – como se submisso àquele processo que sofriam os filmes de Orson Welles ou Terry Gilliam antes de se encontrarem prontos para ser apresentados ao público. De acordo com a tua descrição acerca do que não foi incluído no disco final, quase parece que algo foi suavizado ou transformado em algo mais acessível. Sentes que o Decline começou por ser uma experiência-pesadelo de maior densidade? Até que ponto o suavizaste com a preservação do seu material mais cru para os teus arquivos pessoais?

Sim, o afeiçoamento à cinematografia e ritmo próprio de um filme influencia-me continuamente a remover os elementos típicos de uma banda rock a favor das qualidades mais viscerais e expansivas de uma canção. No que diz respeito a suavizar o disco e transformá-lo em algo mais acessível, diria que sim e não. Se me sentisse satisfeito com o facto de ter elaborado um “disco-pesadelo”, optaria certamente por lançá-lo assim. Na verdade, todas as músicas são experiência que podem conhecer sucesso ou o fracasso. A minha responsabilidade acaba por ser escolher quais dessas evidenciam maior articulação. Isso nem sempre é óbvio e tento ser muito exigente na avaliação do que funciona ou não. As músicas mais dementes, gritantes e arrojadas acabam por ficar de fora e isso é sempre frustrante. Resumindo, creio que é inevitavelmente mais difícil produzir música que quebra todas as regras e que resulte nos seus próprios termos.

Tens actuado ultimamente? Como adaptas o disco às prestações ao vivo?

Ao vivo, não tentamos imitar o disco com o uso de drum machines e sintetizadores. Nesse âmbito, acabamos por adoptar uma abordagem jazzy da folk mais psicadélica. Outra pessoa provavelmente optaria por subir ao palco com um fato radioactivo e envergar uma luz enquanto dançava, mas não me sinto particularmente incentivado a “entreter” o público de um modo tradicional ou a distraí-las do que seja.... Prefiro apenas oferecer uma porção de alma.

Ao escutar o Decline fiquei com a sensação de que podia muito naturalmente ter sido explorado e multiplicado em mais um par de discos. Durante o seu processo, nunca sentiste que podias ter em mãos um álbum completo feito apenas a partir de matéria em tape?

A versão do disco que conheceu lançamento representa a terceira tentativa de o completar. Muitas músicas foram abandonadas durante o processo. Existem duas versões de I Want to Live a Peaceful Life (disco de 2003) e habitualmente sucedem-se várias tentativas de alcançar um conceito antes de haver algo que mereça ser um disco. Sobra dessa prospecção uma toneladas de out-takes, que normalmente procuro oferecer a compilações e sete polegadas.

Ainda acerca da variedade e o facto de discretamente se espalhar pelas faixas, fala-me um pouco de como evoluiu a “Satanic Androids”? Se fosse encarregado de escolher uma faixa que encapsulasse Decline of the West, seria seguramente essa. Parece-te viável?

“Satanic Androids” foi misturado na mesma altura que “Black Tar Prophecy” dos Grails, e ambas eram as mais longas faixas em que alguma vez tinha trabalhado. Foram elaboradas a partir de uma imensidão de improvisações e, em vez de encurtar os seus conceitos, pareceu-me mais interessante manter a sua vasta duração. Levou isso a que fosse obrigado a tornar cada momento interessante a partir de todo o tipo de ideias que pudesse tentar. Queria entender se seria capaz de elaborar duas longas músicas sem tropeçar no pretensiosismo. Nunca cheguei a incluir os exercícios verdadeiramente experimentais nos discos de Holy Sons, porque nunca me pareceram suficientemente bons e isso sempre me incomodou. “Satanic Androids” é um exemplo eficaz de uma faixa de moderadas ambições experimentais que acabou por resultar, quando tantas outras semelhantes não foram capazes de me convencer a título definitivo. De certo modo, engloba uma série de coisas acerca do disco.


Parece-me fazer todo o sentido que a a compilação My Only Warm Coals seja inspirada na trilogia Samurai de Musashi Miyamoto [repare-se no artwork], tal como Decline of the West podia bem representar a percepção vigilante de um Ronin com os olhos postos no mundo. Foi uma experiência solitária do início ao fim?

Sim, estás certo nessa comparação. A primeira versão do disco incluía músicas muito mais ríspidas e perturbadas. Uma das primeiras músicas que compus no âmbito do Decline tinha o título de “People are Scum / Nobody Cares”, que toquei apenas uma vez, muito mal disposto e numa primeira parte dos Quasi... O disco incluía também uma versão dos Circle Jerks e outros momentos mais preenchidos por hardcore e berros. Como sempre acontece, não cheguei a incluir nada disso porque me parecia que ninguém ia entender de onde partira esse sentimento inicial. Existe um ensaio de Tolstoy entitulado What is Art?, que refere a arte como uma prática a manter em isolamento total – e isto, se bem me lembro – e a que a audiência acede como se essa se tratasse de uma mensagem surgida a partir do personalismo do artista na sua própria solidão. Basicamente, Tolstoy atesta que qualquer tentativa consciente de cativar um público resulta em entretenimento e não em arte, que, supostamente, se limitaria a uma qualidade privada intrínseca. Holy Sons assenta nessa filosofia de Tolstoy, pelo facto de existir num plano que podes alcançar, mas que não fará muito por chegar até ti.

É curioso mencionares a versão de Circle Jerks que ficou de fora. Qual foi? O Group Sex tem grande potencial como disco…

O Group Sex é um álbum clássico, mas a versão era de “Wild in the Streets”, que me fascina desde a infância quando a escutei na grande cena de perseguição do filme de skate Trashin— – A Grande Descida. Devias escutar a versão original do Garland Jeffreys. Assemelha-se aos Stones da fase Goats Head Soup.

Em que altura completaste a “Torture Chamber” que veio a integrar a compilação do festival Halleluwah? Pertencia a algum álbum?

“Torture Chamber” é uma de muitas músicas que pertencem à primeira versão do próximo disco. Ainda estou a meio das gravações da segunda versão deste próximo disco. Existe outra música resultante das primeiras sessões que surgirá numa compilação em Seattle e um sete polegadas a ser planeado por uma label de Liverpool. Aprecio realmente colaborar com amigos que conheci em vários lugares e que não pertencem à indústria musical de grandes proporções. Leva isso a que Holy Sons se mantenha como uma prática algo anárquica.

Como foi abrir concertos para Daniel Johnston? Como lidaste com o facto de, nestes últimos dois anos, ter sido projectado à escala global com o documentário? Surpreendentemente, uma grande telecomunicadora aqui de Portugal usou a “Casper, the Friendly Ghost” numa campanha publicitária. Algumas das faixas que o Daniel Johnston gravou com Jad Fair no It’s Spooky são versões de material antigo. Alguma vez equacionaste regravar o teu material mais lo-fi dos primeiros tempos? Sentes que, tal como o Daniel, também desenvolves um labirinto referencial nos discos?

It’s Spooky é outro daqueles discos clássicos a que a história da música há-de fazer justiça. Vi o documentário na noite passada e fiquei aliviado por não ser tão triste como eu julgava. Não sei se o documentário afectará o trajecto da sua carreira do mesmo modo que o dedicado a Jandek [o enigmático songwriter que Emil tem acompanhado na bateria] afectou a sua. Sim, estou perto de concluir a compilação de material lo-fi antigo que ainda aprecio. No que toca a regravar as mesmas, faço-o constantemente. Grande parte dessas não chega a ser lançada, mas, a cada novo disco, regravo pelo menos uma canção que conte com 10 anos ou perto disso.

Que podes antecipar quanto a essa compilação do espólio lo-fi? Sobre que período temporal se debruçará? Apontas ao formato duplo ou isso seria pura megalomania?

Cada ano revela diferentes fases e correspondentes formas de gravar usando equipamento e métodos distintos... Coincidentes com diferentes disposições e estados de espírito que dominaram determinados períodos de tempo. Por isso, existe imenso material a recuperar. Contudo, e atendendo a que as gravações funcionavam como terapia e oportunidade para experiências de cariz sónico, é difícil encontrar a qualquer ano músicas que agradem a um público que não minoritário. Por exemplo, conheci um estudante de música na universidade que tomou contacto com o meu material lo-fi e proclamou, de imediato, que aquilo não era música. De certo modo, tinha razão, porque o universo que habitava nessa fase não abria portas a alguém além da minha vontade extremamente egoísta. Não era capaz de estabelecer diferenças entre músicas, colagens de som captado aleatoriamente e conversas espontâneas gravadas em tape. O disco de retrospectiva incluirá um par de canções de cada ano, mas ainda não terminei a selecção e também depende da vontade de quem o venha a lançar. Sinto-me capaz de o limitar a apenas um CD, porque me custa a acreditar que existam muitas pessoas, além de mim, com uma tolerância infinita perante o lo-fi.

Preservas alguma memória mais especial dos Superchunk durante a tua juventude em Chapel Hill? Eu adorava que viessem a gravar pelo menos mais um disco.

Mantenho apenas algumas memórias definitivas dos Superchunk. O único disco deles que possuo é o primeiro sete polegadas que ainda adoro. Comprei-o ao Mac [McCaughan – actual patrão da Merge e activo enquanto Portastatic] numa loja de discos em que ele trabalhava e em que me dava a conhecer discos de que eu era capaz de gostar. Ele e outros empregados nessa loja familiarizam-me com uma série de discos importantes, quando ainda era miúdo e numa fase ideal a essa assimilação. O Mac mostrou-me o Vampire on Titus numa altura em que ninguém fazia ideia de quem eram os Guided By Voices. Eu praticamente vivia naquela loja de discos e perdia os dias a jogar basquetebol e a falar sobre música. Tinha cerca de 13 anos. Outra memória especial será a de um dos melhores concertos que já vi: os Sebadoh, com instrumentos de brincar, a abrir uma noite em que também tocaram os Superchunk e Fugazi, no Cat’s Cradle sito na Franklin Street. Teria uns 14 ou 15 anos e assisti aos concertos no palco em permanente espanto.

Que sabes, por esta altura, acerca do Timothy [o violinista dos Grails que desapareceu após uma digressão europeia]? Foi estranho lançar os volumes de Black Tar Prophecies sem ele por perto?

Os Grails sempre foram mais um projecto que uma família, daí que nunca nos tivéssemos conhecido mutuamente por inteiro. Verificou-se uma intensa turbulência até ao ponto em que o Timothy decidiu abandonar os Grails e, assim que o fez, tornou-se muito mais fácil trabalhar. Não sei exactamente como tem vindo a passar estes dias, mas, de acordo com a minha experiência pessoal, quanto mais longo é o período de tempo acumulado por alguém sem dar novidades, maior é a probabilidade de isso significar algo trágico quando o problema está relacionado com o consumo de drogas.

Versões a gravar hoje?

"I am a lonesome hobo", Bob Dylan, "Worried Man Blues", Carter Family, "Addiction", Slapshot, "Pretty Ugly", Trollin' Withdrawal, "Wolves and Leopards", Dennis Brown.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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