ENTREVISTAS
Gary Lucas
O Deus e os Monstros
· 16 Mar 2004 · 08:00 ·
© Argen Veklt
Iniciou-se na guitarra em miúdo e é agora um músico e compositor reconhecido em todo o mundo. Gary Lucas agarrou o sonho que transportava ainda jovem e só o largou quando conseguiu transformá-lo em realidade. Mais conhecido pelas colaborações com Captain Beefheart e com Jeff Buckley, participou ainda num sem número de projectos quer a nível individual, quer com a sua banda de sempre, os Gods And Monsters. A revista Folk Roots recentemente considerou-o como o "mais interessante guitarrista a tocar actualmente". O Bodyspace foi a Nova Iorque, cidade onde Gary Lucas vive, para lhe fazer algumas perguntas.
Começou a tocar guitarra aos nove anos aconselhado pelo seu pai mas também tocou corneta francesa aconselhado pelo professor da banda da sua escola. Os pais têm sempre razão, não têm?

Os pais não têm sempre razão, mas o meu pai andava muito perto disso já que foi ele que teve a ideia de eu pegar na guitarra.

A partir do momento em que decidiu tornar-se músico até ao momento em que conseguiu realmente atingir esse objectivo esteve em muitas bandas e passou por muitas situações. Como é que aconteceu essa escalada?


Foi mesmo uma progressão natural – gostava de tocar, logo liguei-me a pessoas que gostavam também de tocar e vice-versa.

O concerto de estreia do Captain Beefheart na Costa Oeste mudou a sua vida. O que é que chamou a sua atenção?

Mudou a minha vida porque eu nunca tinha ouvido nenhuma banda tocar de forma tão poderosa, colorida e intensa – e provavelmente nunca mais voltei a ouvir (apesar de o concerto do Brian Wilson inserido na digressão Smile que aconteceu no Royal Festival Hall o mês passado ter andado lá perto). Nunca tinha visto ou ouvido também guitarras serem tocadas de forma tão estranha. Fez-me dizer a mim próprio “se alguma vez fizer alguma coisa na música, quero tocar com este tipo”.

Todos sabemos que o Captain Beefheart foi um dos músicos mais excêntricos e inovadores de todos os tempos. Considera-o um verdadeiro génio?

Completamente, sem qualquer dúvida – de cabeça e ombros acima da maior parte dos outros músicos, especialmente para um tipo sem habilidade inata para tocar qualquer instrumento com verdadeira mestria (apesar de tudo era um soprador de harmónica bastante competente). Era um primitivo, ou por outras palavras, continha uma genialidade que transbordava a sabedoria.

Do sonho à realidade, começou a tocar com a Magic Band do Captain Beefheart. Como é que isso aconteceu? Como é que se sentiu a tocar, lado a lado, com o seu herói de infância?

Aconteceu porque quando vi a estreia dele em Nova Iorque, prometi tocar com ele caso fosse fazer alguma coisa a nível profissional. Organizei o meu tempo e continuei a praticar a música dele em segredo e, finalmente, disse-lhe que queria uma audição para entrar na sua nova banda em 1975, quando a antiga banda o deixou. Ele ficou surpreendido pois nunca lhe tinha dito que tocava guitarra (até à altura, não achava ser suficientemente bom). Ainda em 1975, convidou-me para ir até Boston, já que ele estava em digressão com o Frank Zappa na tour Bongo Fury, por isso levei a minha guitarra para lá e toquei para ele no quarto do hotel onde ele estava. Ainda levei alguns anos até me juntar a ele, pois tive de partir para o extremo oriente para trabalhar no negócio do meu pai. Quando voltei uns anos mais tarde, entramos de novo em contacto e ele disse-me que estava à espera do momento certo para me trazer a palco. Em 1980 mandou-me música para aprender e o resto é história. Era puro êxtase tocar com ele mas também bastante cansativo pois ele conseguia ser um pouco ditatorial. Mesmo assim não me arrependo de nada no que diz respeito ao meu relacionamento com ele.

Gravou Doc at the Radar Station e Ice Cream For Crow com o Captain Beefheart. Como é que foi trabalhar com a banda?

O pessoal da Magic Band foi fantástico, mesmo amigáveis e prestáveis no que diz respeito à minha participação nesses albuns.

“Evening Bell” é, com certeza, uma canção especial para si. Como é que foi o processo de criação e, acima de tudo, o processo de memorização?

Bem, foi uma criação do Don desde o princípio, eu apenas traduzi a improvização no piano para guitarra. Sei, obviamente, que introduzi muito do meu próprio estilo na canção. Ele mandou-me uma cassete e disse-me “aprende isto”. Eram cerca de 45 segundos de uma gravação em que ele tocava piano, e eu sentei-me com ela e com a minha guitarra durante cinco ou seis semanas, traduzindo mais ou menos cinco segundos por dia para a guitarra, de ouvido. Quando acabei, mandei-lhe a minha versão em cassete e ele disse “sim, mas ainda há mais” e mandou-me uma segunda cassete com mais música. Tive, depois, de juntar esta última parte com a parte da primeira cassete por isso aprendi a segunda parte como uma peça discreta e, depois, pratiquei teimosamente a transição da primeira cassete para a segunda vezes sem conta, pois essa era a parte mais complicada, juntar as duas composições. Descobri que a minha memória era muito boa pois havia algumas notas estranhas para memorizar e executar cuidadosamente e de forma rotineira.

Depois da pausa do Captain Beefheart, decidiu produzir discos para Dave Gordon e Tim Berne. Como é que foi enfrentar o fim daquilo a que chamou de “primeira banda rock avant-garde do mundo”?

Fiquei um pouco triste pois a banda tinha sido toda a minha vida. Mas estava determinado a erguer-me do chão, tirar o pó de cima de mim, e mergulhar de cabeça no mundo da outra música, que é um mundo imenso. Nunca olhei para trás.

De seguida, multiplicou-se em diversos projectos, como a Knitting Factory. Como é que foi montar o seu próprio espectáculo de guitarras?

Bem, estava um bocado nervoso até entrar em palco e começar a tocar. A sala estava cheia e eu estava a transpirar, nervoso. Mas mal comecei a tocar, fui invadido por uma onda apaixonada de êxtase que tomou conta de mim e ainda houve lugar para múltiplos encores. Além disso ganhei bastante dinheiro. Naquela noite disse a mim mesmo “é isto que eu quero fazer da minha vida” por isso dediquei-me à música a tempo inteiro. Foi mesmo um ponto de viragem na minha vida, o mês de Junho de 1989.

Apresenta uma mistura eclética de jazz, rock, folk, blues e música clássica. Os Gods and Monsters são o principal veículo para isso?

Sim, já toco com esta banda há uns quinze anos. São todos músicos incríveis, Jonathan Kane na bateria e Ernie Brooks no baixo. Nos primeiros tempos, a constituição da banda era diferente e sofreu algumas mudanças com a entrada de cantores como o Jeff Buckley, que se juntou a nós em 1991. Mas esta formação tem-se mantido estável nos últimos sete ou seis anos, Deus os abençoe.

Como é que conheceu o Jeff Buckley? Como é que era a sua relação com ele?

Fui convidado para tocar num tributo ao pai dele, Tim Buckley, na igreja de St Ann em Brooklyn, na primavera de 1991 pelo produtor Hal Willner. Ele disse-me que o Tim tinha um filho chamado Jeff que o tinha contactado para actuar também de forma a prestar tributo ao seu pai, que tinha falecido quando ele era ainda miúdo. Nunca ninguém tinha ouvido falar do Jeff. O Hal pensou que eu seria um bom colaborador com ele. Por isso vi o Jeff no primeiro ensaio, a cara chapada do pai, e ele parecia verdadeiramente eléctrico. Chegou perto de mim e disse “Oh, Gary Lucas! Adoro a tua forma de tocar, sei tudo sobre o teu trabalho com o Beefheart, li sobre ti na revista Guitar Player!” Convidei-o para vir até ao meu apartamento em Greenwich Village para trabalhar numa das canções do pai (“The King’s Chain” do album Sefronia), liguei a guitarra e comecei a tocar. O Jeff começou a cantar e o resto é história. Disse-lhe que era uma verdadeira estrela, mas ele não pareceu acreditar em mim – ele era bastante tímido e modesto naquela altura. Pedi-lhe imediatamente que se juntasse à minha banda, os Gods And Monsters, pois procurava um vocalista. Ele adorou a ideia. Diria, definitivamente, que fui um mentor para ele e um colaborador com quem ele podia realmente contar. Algumas das canções que produzimos juntos, como “Grace” e “Mojo Pin” por exemplo, fizeram estremecer o mundo.

Como é que era trabalhar com ele?

Ele foi o colaborador mais talentoso que alguma vez tive. Nós tinhamos uma relação de composição de sonho: entregava-lhe um instrumental completamente acabado e ele voltava, por vezes meses mais tarde, com a melodia completa e letras que se ajustavam como uma luva perfeita. Era um músico incrível!

Como é que reagiu à morte dele? Tinham alguns planos para o futuro?

Fiquei completamente esmagado. Fiquei especialmente triste pois sabia que teriamos hipótese de fazer muito mais bom trabalho juntos se ele tivesse vivido, apesar de não termos planos específicos. Tinha-me juntado com ele em palco, em Nova Iorque, a convite dele e apercebi-me que a magia e a química ainda estava ali, entre nós.

Como é que foram os momentos que resultaram em Songs to no One?

Pequenos momentos do ano que passamos juntos, música verdadeiramente pura e espiritual.

Trabalhou com o Lou Reed, Nick Cave, John Cale, John Zorn, Iggy Pop, Patti Smith e muitos outros. Tem alguma história especial para contar?

A Patti, em 1996, convidou-me para actuar com ela no Tramps, um clube nocturno aqui em Nova Iorque com o Lenny Kaye e o Oliver Reed num espéctaculo em memória do grande escritor de canções que era o Robert Palmer e que tinha acabado de falecer. O Robert foi meu amigo, e, na revista Rolling Stone, deu quatro estrelas ao álbum de 1992 dos meus Gods and Monsters. Fiquei surpreendido com o convite dela porque nunca nos tinhamos conhecido antes, e fiquei completamente emocionado e orgulhoso ao receber o convite dela para tocar. Por isso, rockamos muito!

Teve sempre uma relação estreita com a música do mundo. O seu trabalho a solo mais recente, The Edge of Heaven, é um tributo à música pop chinesa dos anos trinta. Como é que surgiu essa ideia? Teve alguma inspiração ou preparação especial?

A minha primeira mulher era chinesa e ela tinha uma música numa cassete (nós vivíamos juntos em Taipé, ela estava a estudar e eu trabalhava lá) que pôs a tocar numa certa noite. Fiquei espantado, nunca tinha ouvido nada assim. Um cruzamento de Billy Holiday com Anna May Wong, swing de tin pan alley com influências chinesas. Guardei a cassete como se fosse um tesouro e em 1996, o meu melhor amigo convidou-me para fazer os arranjos para algumas canções para o casamento dele com a sua querida chinesa aqui em Chinatown, Nova Iorque. Tive um sucesso enorme e estava determinado a pôr algumas partes no meu album Evangeline, o que deu origem a uma oportunidade de fazer o album inteiro, que foi finalmente lançado uns anos depois. Correu o mundo todo e teve críticas delirantes em cada país onde foi lançado - inclusivé na China!

E em relação aos Du-Tels, com o Peter Stampfel? No Knowledge of Music Required é muito diferente daquilo que costuma tocar. Como é que foi a experiência?

Adoro tocar com o Stampfel, uma espécie de bluegrass psicadélico de longa data que está no meu sangue, embora não esteja presente nos meus outros trabalhos. Nos anos 60, costumava ouvir religiosamente uma banda chamada The Holy Modal Rounders. Eles eram engraçados, inteligentes e anárquicos e faziam-me sempre sorrir.

Faz muitas vezes música para filmes e documentários. Como é que é criar música para as imagens? É mais fácil ou difícil fazê-lo?

Música para filmes é fácil para mim pois toda a minha música contém elementos cinematográficos. Gosto de pintar imagens sonoras na mente com o uso da música. Gosto de levar as pessoas numa viagem.

A Magic Band vai reunir em Junho. Qual é a sensação de voltar a tocar com a sua banda?

É uma sensação incrível, eles são excelentes artistas e conseguimos tocar quase de uma forma sincronizada. A música continua a soar tão fresca como soava originalmente.

Ainda está envolvido em muitos projectos. Quais são os planos para o futuro?

Fazer mais álbuns, digressões por mais países e continuar a expandir a minha audiência. Acima de tudo, é aquilo que eu mais gosto.
André Gomes
andregomes@bodyspace.net

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