ENTREVISTAS
B Fachada
Gelado de Limão
· 15 Jun 2009 · 18:36 ·
© Vera Marmelo
A seu tempo, o cepticismo fará as pazes com B Fachada. Para já, Um Fim-de-Semana no Pónei Dourado, o primeiro fonograma de longa-duração, é o passo de gigante que certifica tudo o que parecia inevitável desde que os primeiros sintomas foram revelados na netlabel Merzbau (agora encerrada em termos de edições, mas bem viva na disponibilização dos impressionantes Até Toboso ou Mini CD: produzido por Walter Benjamin).

As indubitáveis qualidades de Pónei Dourado já não nos deixam mentir, porque Bernardo Fachada é isso aí: alguém capaz de gerar um entusiasmo praticamente inédito nas últimas duas décadas da canção portuguesa. Ele é simultaneamente o traficante duplo, que infiltra canções da cidade na aldeia e vice-versa; o contador de histórias sensíveis ao azedume e ao comportamento; e o músico elogiado pelo comparsa Samuel Úria (num press-release que vale mesmo a pena ler). Iluminado por uma excelentricidade muito sua, Bernardo Fachada afirma-se como um valente estratega da canção que foge à inconsequência e ao desenraizamento dos êxitos do horário nobre.

Pela forma como espelha o Verão de B Fachada, Um Fim-de-Semana no Pónei Dourado é a versão Beta de si próprio, um fresco apaixonadamente irreflectido (como os amores retratados), um conjunto de canções que usa a alma como única maquilhagem (sem riscas no nariz). Anda que está dura a erecção criativa de um B Fachada perfeitamente lúcido no malabarismo lírico que faz com o tempo, o território (ele já tocou na Zé dos Bois, na Zé dos Bois, na Zé dos Bois) e o humor (auto-)referencial criminosamente seco, porventura a sua grande marca de autor. Entre o “z” de “Zé” (o burguês emancipado) e o “z” de “Zé dos Bois” (em “Lá na Selva”), desfila o abecedário da canção que recusa passar indiferente. Efémeros ou não, muitos dos temas incluídos em Pónei Dourado têm tudo para perdurar nos lábios de quem se atrever a cantá-los à mesa com amigos em jantares bem regados. Foi este empolgamento que levou o Bodyspace a quebrar o gelo com Bernardo Fachada.
Acreditas que reduzir a quatro dias a gravação do disco salientou nas canções aquilo que preferiste manter afastado de excessos? Que vantagens encontras nessa limitação de tempo? Este seria um disco bem diferente caso fosse gravado ao longo de um mês, não?

Não conheço formas cristalizadas das minhas canções. Um disco em 4 dias é uma experiência musical de gravação: gravo versões. Não precisava de ter sido gravado num mês para ser diferente: quaisquer outros quatro dias resultariam num fonograma diferente.

Presumo que a restrição de tempo tenha obrigado também a um plano compacto de gravação dos vários instrumentos e vozes. Houve algum acrescento de última hora que tenha surgido quando viste o que tinhas ao teu acesso no (estúdio) Pónei Dourado?

Os arranjos são habitualmente criados ao longo da gravação: tenho ideias de partes de um esqueleto e depois a versão da canção vai crescendo com os acrescentos, um a um.

© Vera Marmelo

Através da entrevista no Ípsilon, fiquei a saber das fundações do “disco de inverno”, a ser gravado em Setembro. Calculas que o disco venha a incluir uma grande parte de músicas recentes ou é possível que recuperes alguns temas passados? Achas que esse factor sazonal reflectiu-se com a mesma força em algum dos lançamentos que antecederam o Um Fim-de-semana no Pónei Dourado? O Viola Braguesa tem umas trovoadas lá pelo meio…

Os discos anteriores têm a sua caracterização sazonal quase inocentemente. Mas consciente ou inconscientemente faço discos efémeros, que se consomem como as paixões. O disco de inverno será composto por canções inéditas, como de resto é meu costume não repetir gravações, pelo menos por enquanto.

Quando mencionei a recuperação de temas passados num próximo disco, referia-me aos que foste revelando com o tempo no Tradição Oral Contemporânea e em concertos, e que ainda não se encontram em disco. Acreditas que esses possam integrar os discos próximos?

Duvido. As canções que ficaram de fora são de vários tipos: umas que são canções de tocar ao vivo, exclusivamente, e outras que eu simplesmente deixei de tocar por falta de vontade. As canções substituem-se umas às outras: esta é uma dinâmica do meu trabalho que eu cuido e preservo.

Aquando da noite de apresentação de Tradição Oral Contemporânea na Fábrica Braço de Prata, tenho a impressão de te ter escutado a dizer que a capa do Um Fim-de-semana no Pónei Dourado seria qualquer coisa que remetesse para o imaginário das férias de Verão. Chegaste a pensar numa capa que encaixasse bem entre os discos de música popular portuguesa que se vendem nas estações de serviço?

O imaginário de Verão não é obrigatoriamente um imaginário de férias e de estações de serviço. Tem mais a ver com o ciclo animal do Homem ao longo do ano e com aquilo que é irracional nesse ciclo.

© Vera Marmelo

Conhecias previamente algum do trabalho do Tiago Pereira, quando acedeste ao convite que levou ao Tradição Oral Contemporânea? Parece-me, à partida, um documentário filmado de forma muito livre e descontraída. Que memórias agradáveis guardas desse tempo?

Conheci o trabalho do Tiago Pereira precisamente quando - e porque - ele me convidou para o documentário. O Tiago trabalha de uma maneira frenética e cuidadosamente especial: precisamente para no final parecer livre e descontraído. As memórias mais agradáveis das filmagens para o documentário foi a convivência com o Tiago e com as duas velhinhas mais assíduas do filme, a Adélia e a Avelina - umas queridas.

A Dona Adélia já conhece o Pónei Dourado? Já concedeu alguma reacção?

A Adélia não é ouvinte de discos com regularidade. Além do mais, é uma diva da tradição oral, e sabe. Mas há-de chegar o dia de lhe mostrar o Fim-de-semana. Duvido que ela goste.

Gosto de como a violência numa relação rende duas músicas completamente diferentes. Penso na “Conceição” e na “Violência Doméstica”. Parece-te um tópico que merecia ser mais vezes aplicado na canção portuguesa?

Não sou um moralista. A violência na “Conceição” não é linearmente má. Se o fosse, a Conceição sofria muito, mas não sofre, ou melhor, não sofre porque sofre. Na “Violência Doméstica” tão pouco é uma história de porrada linear. Qualquer tema é tema para a Pop: não acredito no dever da intervenção social ou de qualquer outro tipo. Eu não faço intervenção, eu faço desconstrução moral.

Com o concerto a dois no Record Store Day na Flur e depois de, no Maxime, referires que o “Zappa Português” era um tema para tocar com o Samuel Úria, fica a ideia de que existe um reportório afecto a ambos. Confirmas isso? Em caso afirmativo, que outras músicas incluirias nesse conjunto comum?

Não existe propriamente um repertório afecto aos dois. De resto, só tocámos juntos uma mão-cheia de vezes. Eu tenho uma grande admiração pelo Samuel e em todos os concertos consigo arranjar uma boa desculpa para o elogiar: é um grande cantautor, o Samuel.

© Vera Marmelo

O processo mais prático das edições da Merzbau parecia-te favorecer o meio que procuravas para as tuas canções? Essa rapidez era, de alguma forma, um estímulo para produzir novos temas? Tens pena que a Merzbau cesse agora a sua actividade?

Produzo canções a um ritmo geralmente constante desde o princípio até hoje. A Merzbau é a minha primeira casa. E o seu fim é o princípio de outras coisas para toda a gente. Ninguém está de luto, a Merzbau tem o valor que tem e isso não se perde. O catálogo está lá para quem quiser.

Imaginas-te a tocar regularmente com uma banda num futuro próximo? Ou essa é uma daquelas coisas que “acontece quando tiver que acontecer”?

Nos discos toco eu comigo. Ao vivo também. De resto, para reproduzir o disco ao vivo necessitaria de uma banda com 50 gajos a tocarinhar como crianças outros tantos instrumentos de gente grande.

Em concerto, costumas também zelar pelo silêncio por parte do público. Acreditas que músicas como “Pelas Ruas” ou “Lá na Selva” exigem ainda mais esse silêncio para funcionarem em pleno?

Toda a música exige silêncio por igual para existir: o silêncio é a folha em branco do músico - sem ela, nada feito. Quando há barulho, é só o barulho que eu oiço de cima do palco: começo a tocar e a cantar francamente pior que o costume, por ter que me impor pelo volume, e começo a ficar desconcentrado - pior, começo a ficar de mau humor. Enfim, uma desgraça.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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