ENTREVISTAS
Fish & Sheep
Do corpo ao cérebro
· 28 Nov 2005 · 08:00 ·
© Ana Sofia Marques
Desde o ano passado que Afonso Simões e Jorge Martins vêm produzindo alguma da mais bela música nacional. Ambos são personagens inevitáveis na árvore da nova música nacional, seja nos Frango, no projecto solo de Afonso, Phoebus, ou nos Fish & Sheep, que editaram recentemente o segundo CD-R, Para o Inferno com Eles, um split com os nortenhos Tropa Macaca, com selo da novíssima Lovers & Lollypops. Uma guitarra e uma bateria são os recursos que costumam utilizar para chegar a uma massa de som que Matt Valentine comparou apropriadamente a uma “massagem”. Podem ser encontrados pontos de comparação com o clímax rock dos Fushitsusha de Keiji Haino ou a desconstrução do jazz em estilhaços ruidosos dos Borbetomagus, mas em poucos meses o duo encontrou já uma linguagem própria, mas sempre surpreendente, e que os torna numa das mais interessantes bandas da nova cena rock portuguesa. O Bodyspace falou com os dois Fish & Sheep antes do concerto com os companheiros de split no Passos Manuel, no Porto, no passado dia 4 de Novembro.
Como comparam este novo Para o Inferno com Eles com o anterior Mix Sex With Stupid?

Jorge Martins: A principal diferença é a forma como ficou gravado.
Afonso Simões: Um é ao vivo e outro é em estúdio. É a principal diferença, apesar de ser tudo take directo. Quer dizer... no split não é bem assim, há coisas que repetimos.
J: O quê?
A: As ideias… Foi uma improvisação diária. Foi tudo dentro daquele espaço de tempo e se calhar repetimos algumas ideias.

O outro foi gravado num concerto da Galeria Zé dos Bois (ZDB)…

J: É um bocado do concerto da ZDB com um bocadinho do do Mercedes.

Sendo take directo e improvisado, que diferenças acrescenta o estúdio a uma obra de Fish & Sheep?

A: O estúdio é uma coisa muito asséptica, clínica... A adrenalina é diferente.
J: A única diferença é que em estúdio pode haver um maior número de horas…
A: Mas o facto de ser ao vivo obriga-te a ir directo ao assunto, em estúdio podes divagar.
J: Gravamos o máximo que podemos. Consoante as coisas vão aparecendo e vamos gostando ou não, editamos.

Como é que decidiram partilhar o disco com os Tropa Macaca?

A: Foi o Fua [n.r.: responsável pela Lovers & Lollypops]. Ele propôs lançarmos uma cena e como ele já conhecia o Jorge… São coisas que não se completam, mas que batem certo [juntas].
J: Não fica tudo do mesmo, sentes uma divisão entre as duas coisas. É fixe haver coisas diferentes a vir do mesmo lado.

Como é que conheceram o Fua?

A: Ele organizou um concerto em Torres Novas que foi um dos nossos primeiros concertos. Tocámos com os Lady Cleaners, uma cena laptop, noisenoise digital [risos]
J: Playstation!
A: O gajo tocava com um pad. O Fua trouxe cá os gajos e organizou esse concerto em Torres Novas e convidou-nos. Depois convidaram-nos para lançar o disco. Esse concerto foi mesmo fixe. É uma cidade com uma realidade completamente diferente de Porto ou Lisboa. As pessoas não sabem de que estão à espera e levaram logo com aquilo de chapada.

O formato guitarra mais bateria, não sendo inédito, continua a ser pouco ortodoxo. Como chegaram até ele?

A: Conhecemo-nos, ele tocava bateria e eu guitarra, tivemos algumas afinidades.. E vimos que não era preciso muito mais que isso.
J: As primeiras vezes que nos encontrámos foi para tocar. Encontrámo-nos uma vez, conhecemo-nos e depois marcámos um estúdio.
A: Já demos concertos sem bateria. Já fizemos uma cena com circuitos fechados e uma data de delays. Estou contente com o line up assim. É diferente tocar bateria, concentras-te mais no ritmo ou não ausência dele. Sinto-me mais confortável a tocar bateria ao vivo porque sou baterista.

Como é que dialogam em palco? Tentam seguir um pelo outro, ou fazem precisamente o contrário e procuram o caos?

J: As coisas estão a acontecer a uma velocidade muito grande. Se eu começo a pensar no que estou a tocar, é mau sinal. É fixe quando a coisa acontece só e não estou a pensar em nada – está a entrar e está a sair.
A: Começámos a improvisar puramente, mas ao mesmo tempo havia uma certa procura… A primeira coisa que gravámos não é muito diferente do que estamos a fazer agora e tinha razões para ser porque fartamo-nos de dar concertos. Eu vou para cima do palco e já sei o que se vai passar. Temos sempre controlo sobre a situação. Por isso não sei até que ponto é uma coisa muito livre.
J: Normalmente acontece-me uma coisa que é fixe: não estou preocupado em sentir se estou dentro da coisa ou não.

Procuram responder um ao outro?

J: Não, não. Não tenho preocupação nenhuma em responder-lhe. Se aparecer essa preocupação é mau sinal.
A: Às vezes estamos a fazer uma cena que aparentemente é desligada ou desconexa mas depois quando entramos ficamos lá. Ficamos num ciclo ou sistema…
J: Esse caminho até chegar a esse ponto faz parte do ponto. Não é uma coisa desligada. Se não houvesse esse caminho não se chegava lá.
A: Uma coisa que me mantém em cima do palco é uma necessidade de se chegar mais à frente.

Algures num texto de apresentação vosso proclamam “Fuck reductionism [n.r.: género de improvisação em que a música está muito próxima do silêncio]. É uma oposição à outra música improvisada?

A: Já ouvi e ainda ouço muitas vezes música improvisada e irrita-me um bocado essa cena da pós-improvisação.
J: Essas merdas têm que ser feitas, o gostar ou não vem depois. Acho muito bem que se façam essas coisas, mas nós não fazemos isso.

Mas o “fuck” dá-lhe uma pinta de confronto…

A: Hmm [hesita]. Se calhar é para marcar território: nós fazemos isto e vocês fazem isso. Acho que essa treta do reducionismo é muito bonita na teoria e dá para escrever grandes artigos, mas depois na prática não se materializa em nada. Nem todo, acho muito interessante quando exploram texturas. Mas esse pessoal não está concentrado nisso, mas antes em “vamos fazer uma pausa, vamos ficar a olhar uns para os outros”.

No mesmo texto lê-se também “proto-rock”. O que é que querem dizer com isso?

A: Isso fui eu que escrevi baseado numa coisa que ele disse que é recorrer a uma data de meios e artifícios para conseguir a uma coisa mais pura, nada exuberante.
J: Quando há um certo excesso, pode ser que a coisa transborde e fique mais pura.
A: O objectivo não é fazer uma coisa gigantesca, barroca, muito alta, desconexa ou cerebral.
J: Quero excluir completamente o cérebro destas questões. Nós somos físicos. Daí também o “fuck reductionism”. Eles não são físicos… [risos] Bem, se calhar são físicos, mas não se aleijam.

© Ana Sofia Marques


Quando é que os Fish & Sheep começaram?

J: Foi no Verão de 2004, para aí em Junho.
A: Um ano e meio no máximo.
J: Ya, eu lembro-me que estava calor.
A: Tem estado calor sempre! [risos]
J: O primeiro concerto foi em Fevereiro [n.r.: na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa].

Como é que foi tocar com o Matt Valentine & Erika Elder em Lisboa e em Vigo?

A: O Matt Valentine disse que devíamos tocar no No Fun Fest. Em Vigo, correu-me muito mal, mas eles gostaram.
J: Ele disse que fomos como uma massagem. São excelentes pessoas, gostei muito de os conhecer. Acho bem que coisas diferentes se misturem, sobretudo em concertos. As coisas estimulam-se umas às outras e estás a levar com coisas diferentes.
A: A ZDB faz isso e é por isso que é dos melhores sítios para tocar.

Relativamente aos vossos dois projectos mais visíveis, Frango e Phoebus. Jorge, quais são as diferenças na tua abordagem criativa, nos Frango e nos Fish & Sheep?

J: Preciso de ter as duas coisas. São pessoas diferentes e gosto de tocar com os outros. Em Fish & Sheep faz sentido fazer isto, em Frango faz sentido fazer outra coisa.

E tu, Afonso? Como é criar em Phoebus, um projecto de electrónica em que estás sozinho, e nos Fish & Sheep?

A: Mas não faço só estas duas coisas…

Mas são as mais visíveis…

A: Para mim não. O que me interessa é o que estou a fazer agora. Já estou a pensar fazer uma data de outras coisas que para mim fazem todo o sentido e não fazem sentido para mais ninguém porque ninguém as conhece [risos]. Existem na minha cabeça. Em relação ao que eu faço sozinho, não tem resposta - é incomparável a qualquer nível.

Em Maio, falamos sobre a suposta cena de rock deconstruído e marginal que se erguia em Portugal e ainda não acreditavam que ela existisse de facto. Passado estes meses, qual é a vossa opinião?

A: Eu acho que há porque as coisas estão a acontecer. Vejo concertos que antes não via. Antes em Lisboa via concertos na ZDB, agora vejo no Lisboa Bar… Toco com o Jorge, já toquei com os Frango na desportiva, toco com o Pedro [n.r.: Gomes, dos CAVEIRA] [n.r.: nos Braço, que se vão estrear ao vivo a 9 de Dezembro, na Zé dos Bois], o Pedro já tocou com o Jorge, o Nélson [n.r.: Gomes] dos Gala Drop já tocou com não sei quem... Acho que há uma cena de música em Portugal fora do circuito comercial em que as pessoas estão a lutar para que aconteçam concertos, CDs, etc.
J: Há um ponto positivo nessa coisa toda, não sinto a coisa a fechar, vai sempre aparecendo mais uma banda ou mais outra e vai dando para organizar concertos. Se calhar há dois ou três anos tínhamos que ir tocar com os Moonspell [risos].
A: Perguntámos ao Noah dos Animal Collective o que é que ele achava de Portugal e ele diz que aqui um concerto é uma coisa do outro mundo… Talvez esteja a exagerar, mas lá [n.r.: Nova Iorque] há concertos em tudo o que é sítio, não é preciso nada de especial para haver um concerto. Nós somos um país mais pobre, mas há condições, há casas, despensas, o que quer que seja. Um concerto faz-se em qualquer sítio. Se as bandas ensaiam porque é que não há de ser um ensaio aberto? Isso é um concerto.
J: O pessoal está cheio de pica para organizar coisas, lançar CD-Rs e isso é uma coisa recente.
A: Acho que recentemente isso é exclusivo de Portugal. Em Espanha sempre houve, em Inglaterra, claro... Se calhar em termos de motivação até estamos mais à frente.
J: O pessoal anda-se a picar uns aos outros. Dou um concerto e depois vejo um concerto dos CAVEIRA ou dos Loosers, passo-me da cabeça e tenho que dar um concerto melhor do que o deles [risos].

Apesar de não se tratar de uma cena noise no sentido estrito do termo, concordam que o ruído é comum a bandas como vocês, Frango, Loosers, CAVEIRA, Gala Drop ou Dance Damage?

J: Não percebo bem essa do ruído. Quando ligo a distorção já há ruído? Onde é que está a barreira? Eu vejo mais uma afinidade na abordagem às coisas.

Não aceitas por isso o epíteto “noise” para Fish & Sheep?

J: Tocamos alto. Acho que é só uma questão de volume e aproveitar o máximo de sons possíveis que conseguimos tirar das coisas que temos nas mãos. Se é ruído ou não, se isso passa por coisas desconfortáveis para quem ouve, azar, não estou preocupado com isso.

Quando ouvi o split pensei nos antiquados conceitos tradicionais de belo e de feio. Mas questionei-me se para vocês, o caos já é beleza ou se é o processo intelectual que o torna belo?

J: Mais uma vez eu quero afastar a cabeça daqui. Nós somos físicos, eu toco com o corpo e se isso provocar alguma reacção no pessoal, melhor. Não estou a pensar em belo nem em feio. É óbvio que se ouvir coisas que fazemos há coisas de que gosto e outras que não. Mas isso é como ouvinte. Enquanto compositor ou improvisador, não estou a pensar nisso.

Pedro Rios
pedrosantosrios@gmail.com
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