ENTREVISTAS
Bernardo Sassetti
Um pouco mais de azul
· 14 Dez 2005 · 08:00 ·
Iniciou os seus estudos de piano clássico aos nove anos e agora, Bernardo Sassetti, é uma das figuras incontornáveis da música made in Portugal, mais concretamente do jazz. O pianista nascido em Lisboa em 1970 tem um currículo invejável, quer no que diz respeito a participações com grandes figuras nacionais e internacionais da música, quer na sua estreita relação com o cinema ou graças às inúmeras digressões realizadas um pouco por todo o mundo. Da sua extensa lista de marcos contam já discos como Nocturnos (em trio), Mário Laginha & Bernardo Sassetti (em duo) e Índigo (a solo). Ao aproximar-se o final de 2005, é apenas natural dizer-se que este foi mais um ano frutífero para Bernardo Sassetti: a juntar a Ascent (editado na Clean Feed), surge também a banda sonora do filme Alice, da sua autoria, dois dos muitos motivos de conversa desta entrevista que mistura propositadamente os sentimentos com a música, não fossem os discos de Bernardo Sassetti uma celebração da emoção.
O que recorda da altura em que começou a tocar piano? Em que altura sentiu que tocaria piano para o resto da sua vida?

É uma pergunta difícil... recordo-me que tinha algum talento para improvisar e que essa talvez fosse a principal dor de cabeça dos meus professores de piano clássico. Foi em 1992, 11 anos depois de ter começado os estudos de piano, quando me aventurei pela primeira vez em Londres. Foi também aí que comecei a perceber o significado da palavra humildade. Tocava todos os dias, tanto em público como em jam sessions organizadas pelos músicos com os quais me fui cruzando por lá. Londres foi, com toda a certeza, o ponto de viragem da minha carreira.

Desde essa altura até aos dias de hoje o rol de momentos importantes para si parece ser enorme. Que momentos destacaria de todos esses?

O convite de Paquito D’Rivera para tocar na United Nations Orchestra; a apresentação da 1.ª banda sonora ao vivo com orquestra (Maria do Mar de Leitão de Barros); o concerto no CCB a dúo com Mário Laginha; a apresentação na Culturgest do novo álbum Ascent; o concerto a três pianos com Mário Laginha e Pedro Burmester; e o momento mais importante de todos: o dia do nascimento da minha filha.

Sente Nocturno como um disco que teve um impacto especial junto do público? Sente-o como um disco especial da sua carreira?

Sinto que é um trabalho muito especial com o meu trio (Carlos Barretto e Alexandre Frazão), depois de estar quase 7 anos sem gravar em meu nome. É talvez o momento de viragem da minha carreira, ou melhor, aquele em que eu pensei “bom, agora já posso começar a fazer música!”.

Ascent, o seu novo disco, foi lançado a 1 de Outubro. Anunciou-o como o desafio mais pessoal da sua carreira. Como se manifestou esse sentimento mais pessoal na composição do disco?

Todo o trabalho foi visto como um todo desde que procurei os primeiros sons e o grande desafio foi atribuir a cada um dos intérpretes um lugar na música deste disco, como se de personagens de uma história fragmentada se tratasse. Os universos sonoros da música erudita e o discurso improvisado do jazz acompanham-me desde há muitos anos e esta foi talvez a primeira vez que os reuni num só disco. Foi também muito importante o trabalho do Nelson Carvalho no som; ele ajudou-me muito na produção e no desenho sonoro das transições de tema para tema.

A autoria do álbum é atribuída ao Bernardo Sassetti Trio2. Como foi conciliar os dois trios e as suas vertentes clássica e jazzística?

Foi fácil porque a ideia das histórias que se cruzam ao longo da gravação e o lugar de cada instrumento foram imediatamente compreendidos pelos músicos que nela participam. Em termos de disponibilidade e entrega dos músicos só posso dizer o melhor, apesar de saber que todos temos muito trabalho nas nossas carreiras e será difícil conseguirmos conciliar sempre as nossas disponibilidades para futuras apresentações.

Ascent, o seu último disco, foi dedicado a José Álvaro Morais, cineasta com quem trabalhou em Quaresma. Qual o motivo concreto dessa dedicatória?

O tema “Ascent” é dedicado a José Álvaro, pois foi ele que me chamou a atenção para o silêncio na arte e, também, para a contenção no acto de escrever música para cinema. Recordo aqui uma frase inesquecível que ele me disse por telefone, várias vezes: “Bernardo, não te esqueças que em cada subida há sempre uma descida”. Por outro lado, todo o disco é uma homenagem ao cinema em geral, nomeadamente a um dos seus maiores segredos: a montagem. São as tais histórias abstractas das personagens que se vão cruzando ao longo da música e que sugerem a montagem de um filme através de pequenos fragmentos. Sempre pensei que, um dia, gostaria de realizar um filme; ainda não aconteceu, dificilmente acontecerá, mas este disco elogia a presença do cinema na minha vida.

Aprecia o cinema pelas imagens que poderão estar interligadas com a sua música, a relação entre dois mundos distintos? Aprecia a fusão de linguagens?

Gosto muito dessa ideia; acho mesmo que o futuro está na comunhão das várias formas de arte, visuais e auditivas. No cinema, aprecio o facto de ser um trabalho de constante colaboração, naturalmente condicionado pelas imagens e pela narrativa; tenho aprendido muito nesta área e, sobretudo, com cada um dos realizadores com quem trabalhei, no sentido de encontrar um lugar artístico que possa impulsionar as tensões e distensões de uma história.

© Rodrigo Amado

Compôs recentemente a banda sonora do filme Alice… Como foi? Imagino que tenha tomado contacto com o filme ou pelo menos com a história anteriormente... presumo que tenha procurado adequar a sua música ao filme. Foi fácil?

O trabalho com o realizador Marco Martins, nesta sua primeira longa-metragem, foi fascinante. Passámos longas horas a falar sobre o filme e debruçámo-nos muito sobre a psicologia das duas personagens principais. O que mais me interessa na música para cinema é exactamente a ideia de poder transmitir musicalmente tudo o que está por detrás das imagens, nomeadamente o interior das personagens. Este é um processo complicado e a sua gestão pode levar meses até conseguir alcançar resultados interessantes e que possam servir o filme. A representação musical dos vários estados de espírito de um ser humano, mais do que a música circunstancial, é o que mais me atrai neste meio de colaboração artística. Neste filme, comecei por dividir a música em três capítulos diferentes: o primeiro é a rotina do Mário à procura da filha desaparecida, a sua obsessão e as suas passagens pela cidade; o segundo é a esperança de encontrar Alice, as câmaras de filmar e os vídeos que visiona noite após noite; o terceiro e último capítulo representa o desespero, a solidão e a indiferença estampada no rosto de todos aqueles por quem Mário se cruza na rua. Em Alice todos os inputs musicais centram-se quase sempre no interior de um pai que nunca desiste, na reacção contrária da mãe e no vazio máximo causado pelo desaparecimento da sua filha. A composição da música, assim como a sua edição, devem muito à mestria no trabalho de som da Elsa Ferreira (edição) e do Branko Neskov (mistura). A meu ver, o som deste filme representa o silêncio interior de um pai vs. o som agressivo que o rodeia diariamente na cidade de Lisboa.

Em que filme sentiu que a relação entre os dois mundos estivesse melhor conseguida da sua parte?

Alice, como já se percebeu, é um filme muito especial para mim; também gosto muito do trabalho com Margarida Cardoso em A Costa dos Murmúrios, com Mário Barroso em O Milagre Segundo Salomé e, claro, com José Álvaro de Morais em Quaresma. São todos projectos muito diferentes.

Ascent tem também uma relação muito próxima com a fotografia. O que é que nos pode contar acerca disso?

A fotografia é uma forma de expressão que me acompanha diariamente; não sou fotógrafo profissional mas sinto que a minha dedicação às imagens fotográficas passa muito pela ideia de poder servir a música que componho, sendo por isso um assunto muito sério; nesse sentido, tenho já ideias muito precisas sobre os dois próximos projectos de gravação e sobre cada um dos seus universos visuais. Pode-se dizer que tenho fotografado imagens que inspiram a música composta, ou vice-versa.

Disse recentemente que hoje em dia preocupa-se mais com o silêncio do que propriamente com o som. De que forma é que isso se revela na sua música?

O silêncio tem-se revelado como uma necessidade absoluta, porque é através do meu silêncio interior que nascem as primeiras ideias. São poucos os músicos de jazz que exploram realmente (repito realmente) esta forma de expressão musical – que é também uma enorme fonte de energia e uma forma de expressão muito orgânica e com a qual me identifico muito. Gosto sobretudo de criar uma música suspensa, quase intemporal em que o tempo de cada nota não é, nem deve ser, um dado adquirido. Mais relevante ainda é a importância que dou às ressonâncias do interior do piano e à preocupação que tenho com o som das notas e dos acordes. Este é só o princípio do princípio; uma das próximas gravações o dirá com mais certezas.

Tem dois projectos em mão neste momento; um com o grupo portuense Drumming e o outro com a Orquestra do Algarve. Em que consistem estes dois projectos e em que ponto estão eles?

O projecto com o Drumming está em fase avançada de composição; entraremos muito brevemente em estúdio num estilo musical completamente diferente do último disco, baseado no universo da percussão. O concerto para dois pianos e orquestra, com o Mário Laginha e a Orquestra do Algarve, vai ser apresentado em Lagos, a 11 de Fevereiro de 2006.

O duo que mantém com Mário Laginha é algo especial para si? Quais são os projectos futuros para esse projecto?

Adoro tocar em duo com o Mário; aprendemos muito a tocar em conjunto e o respeito pelas composições e formas de interpretar é mútuo. Projecto, projectos, projectos... tocar, tocar, tocar e continuar a desenvolver uma cumplicidade que me parece única; pensamos gravar num futuro próximo.

© Rodrigo Amado

O que acha do trabalho de improvisadores portugueses como o Manuel Mota, Sei Miguel, Carlos Zíngaro, Ernesto Rodrigues e Rafael Toral? Sente alguma ligação com o trabalho deles?

De todos os que refere, conheço melhor o Carlos Zíngaro. Ele tem um trabalho notável de exploração tímbrica a par com uma enorme procura pessoal. Sente-se-lhe uma vivacidade imaginativa na exploração de cada tema no preciso momento em que este é executado. Gosto muito de o ouvir. Aprendo com a sua música e fico mais alerta!

Como vê a quantidade e qualidade da música jazz feita em Portugal nos dias de hoje em comparação com os tempos em que começou a tocar?

Existe muita malta nova a tocar bem. E, sobre isso, devo acrescentar que o Hot Clube de Portugal tem feito um trabalho notável na divulgação e ensino deste tipo de música. É também muito importante incentivar as novas gerações e empurrá-las lá para fora, onde os meios artísticos são mais completos... respirar novos ares é sempre bom! Penso que deviam existir mais infra-estruturas de apoio aos músicos em Portugal, salas de ensaio a preço simbólico e espaços de encontro para que os músicos possam desenvolver os seus trabalhos, individualmente ou em grupo.

O número de festivais de jazz em Portugal tem crescido bastante ultimamente. Acredita na sobrevivência e qualidade de todos eles?

Acredito que sobrevivam; só tenho pena que as presenças portuguesas sejam tão (tão tão) minoritárias, nomeadamente na reunião de músicos locais com músicos estrangeiros. Não me refiro a presenças minhas, a solo ou em grupo; aliás, não tenho quaisquer razões de queixa; refiro-me aos novos músicos, alguns dos quais com enorme talento, que deviam ser mais apoiados pelas entidades organizadoras dos principais festivais de jazz. De uma coisa tenho a certeza: não é difícil pensar em projectos interessantes, basta fazê-los com continuidade. Mas hoje, infelizmente, tudo remete para fins comerciais e receitas de bilheteira. A meu ver, e salvo raras excepções, os ingredientes deveriam ser outros, as propostas (a músicos e públicos) mais exigentes e as receitas poderiam ser repensadas – de forma a contribuir mais para o pequeno meio do jazz português. Coisas boas… não posso deixar de referir os excelentes momentos anuais que são A Festa do Jazz no São Luiz e o Festival de Jazz do Valado; aí sim, respira-se a ideia de “família do jazz” em Portugal.

Os mitos dizem que a taciturnidade, a solidão e a noite são elementos essenciais para a escrita da música. Do que precisa Bernardo Sassetti para compor?

Os mitos são sábios e a noite é fértil... Para além de inspiração, só preciso de silêncio e de espaço mental para compor. Mesmo que não componha, posso ficar horas seguidas a olhar para o infinito. Também é bom saber que o telefone só muito raramente toca a altas horas da noite. Também gosto do vazio dos dias feriados em Lisboa...
André Gomes
andregomes@bodyspace.net
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