ENTREVISTAS
Murcof
A estelar desintegração da memória
· 26 Dez 2005 · 08:00 ·
Toda a gente conhece, aos tempos mais obscuros da juventude, aquelas anedotas sobre pistoleiros mexicanos, que serviam para desenferrujar o espanhol básico adquirido através do visionamento de episódios de Verão Azul. Variavam as piadas em torno de fórmulas idênticas a esta:Gringo, tienes tomatos?/Si!/Bang! Bang! Pues ahora tienes ketchup. Ninguém saberá ao certo explicar se o efeito humorístico reside na punch line da anedota ou na lembrança imediata da solidez do objecto-motivo. No México, encontram-se vistosos santuários a cada 3 quilómetros de estrada rupestre. Ali permanecem intocáveis a ostentar a sua riqueza, sem que a pobreza equacione sequer dar uso a mãos profanas. Representam a memória da fé e não há gringo que se atreva a perturbar isso (só mesmo os Brujeria para cumprir tal afronta). Pensar na dimensão intocável dos santuários à escala do país latino revela-se tão épico quanto o contacto directo com a nostalgia. Fernando Corona (conhecido por Murcof, quando se dedica à electrónica astrológica) aponta o manto de estrelas como depósito de reminiscências agradáveis ou nem por isso. Fiquei a pensar se os diálogos de Duarte & C.ª e as músicas de Scorpions não terão provocado uma indigestão à Ursa Maior.
Após tê-lo promovido em digressão e dispendido o tempo necessário com ele em mente, qual é a perspectiva actual que tens de Remembranza? Evoluiu ou revelou-se de alguma forma inesperada?

Sou obrigado a confessar que estou mais satisfeito em relação a Remembranza agora, do que quando o terminei. Foram tempos muito estranhos para mim a nível pessoal. Especialmente durante a fase terminal, em que não era capaz de pensar distintamente. Ainda assim, nunca nos conseguimos realmente afastar do nosso próprio trabalho até ao ponto de sermos capazes de fazer um julgamento factual ou objectivo do mesmo.

Aconselharias Utopia como uma ponte essencial ou apenas recomendável, entre Martes e Remembranza?

Tenho imenso orgulho do Utopia. Inclui algumas faixas memoráveis e outras tantas remisturas que volto a escutar com regularidade. Diria que é importante para compreender a transição entre Martes e Remembranza, principalmente devido às quatro faixas originais incluídas. Mas é evidente que não é essencial. Creio até que cada disco assenta sobre a sua própria estrutura sem necessitar de qualquer preâmbulo. Existem no seu próprio universo.

Ao escutar os três discos de seguida, quase parece que o Remembranza é aquele que se revela mais surpreendido perante o meio circundante, como se tivesse perdido a memória e lutasse desesperadamente para obtê-la de volta. É um disco “amnésico”?

Quase sempre surpreendem-me as interpretações que fazem acerca da minha música e o teu comentário é muito válido. Muitas vezes, dou por mim a redescobrir o meu trabalho através das opiniões dos outros. O Remembranza assenta principalmente sobre “recordar”, mas explora muitos outros aspectos, tais como o “manter” e o “ceder”. É certo que a nostalgia representa um tema comum no meu trabalho e aqui surge mais presente que nunca. Procuro persistentemente recuperar uma memória há muito perdida, nem tanto por ser boa ou má, mas pela sensação de redescoberta que implica.

É habitual as pessoas associarem os teus discos a bandas-sonoras imaginárias. O Remembranza recordou-me instantaneamente do clássico de ficção científica Solaris e da forma como explora a noção de ausência e de como desafia ideias preconcebidas. O Solaris ou qualquer outro filme de ficção científica inspirou-te de alguma forma neste disco?

Não sou um trekkie [n.r.: epíteto atribuído aos fãs obsessivos do universo Star Trek], mas sou um grande fã de ficção científica, ou mais ainda da ideia de espaço infinito. O Solaris é um dos meus filmes favoritos, assim como o 2001 – Odisseia no Espaço e outros clássicos. Na verdade, aquele que é para mim um dos grandes prazeres da vida está à distância de um movimento – olhar para as estrelas numa noite sem lua, longe das luzes da cidade. Isso supera qualquer livro ou filme.

Estranhamente para nós Europeus, os Mexicanos parecem aceitar com naturalidade que um praticante de luta livre [n.r.: o grande Santo!] confronte monstros mitológicos e, logo de seguida, se comporte como uma pessoa normal. Enquanto Murcof, sentes-te estimulado por esse background que encurta a distância entre realidade e fantasia?

Bem... A palavra “realidade” é por si só tão vaga, não é? Depende tanto da cultura e da identidade... Mas creio que sim - o México é, por padrão, um lugar surreal e amo-o por isso. Os símbolos e o que representam são mais importantes que a sua funcionalidade, o que pode constituir um problema na hora de planear uma cidade ou um orçamento de estado. O mundo que os Espanhóis descobriram quando conquistaram o México continua vivo, mesmo que sob a superfície. Aquela forma mágica de sentir a realidade (mais uma vez a tal palavra) exerce influência sobre a nossa “vida moderna”, de uma forma ou de outra.

O facto de a faixa que conclui os teus discos sempre começar por uma letra diferente de todas as outras, funciona como um “fim em aberto” para a narrativa que possa existir, certo?

Sim, correcto.

Atendendo a que “M” corresponde a Martes [n.r.: o primeiro disco], “U” a Utopia [n.r.: o segundo] e “R” ao recente Remembranza”, eras capaz de capaz de antecipar algo em relação ao que o “C” pode ocultar? Esta lógica alfabética leva a que, assim que chegares ao “F”, sejas obrigado a concluir a saga?


“F” para “Final”, talvez.

Ainda no âmbito de esquemas alfabéticos, Murcof encontra-se bem próximo de Muslimgauze. Identificas-te com o seu trabalho [n.r.: ou legado, já que Bryn Jones faleceu em 1999]? Gostas da sua música?

Nunca o escutei sequer.


Após Nicotina [n.r.: eco da explosão do cinema sul-americano, sucedida com Amor-Cão], planeias compor mais bandas-sonoras?

É uma perspectiva que muito me agrada e que gostava de vir a explorar no futuro. Provavelmente no próximo ano poderei aprofundar-me nisso. Foi bastante divertido e é um meio sobre o qual quero aprender muito mais. Trabalhar com base na imagem muda radicalmente o método de composição. Uma componente externa passa a ditar se a tua música resulta ou não e isso leva a que abordes a composição a partir de um ângulo completamente diferente. Acabas por fazer algo muito diferente daquilo a que estás habituado – o que é fantástico.

Após teres providenciado música para videojogos, ballet e filmes, que novos desafios procuras encarar em breve?

O desafio consiste em manter uma abordagem fiel perante o que estás a tentar expressar nesse momento, garantir a proximidade possível do impulso que te leva a compor a música que te agrada. Enquanto não perder esse impulso criativo, não me preocupo com o formato em que música se enquadrará.

Que achaste da banda-sonora que Cliff Martinez compôs para Traffic [n.r.: o tríptico épico sobre o submundo das drogas, realizado por Steven Soderbergh]? A mim parece-me uma grande obra de arte...

Não me recordo dessa banda-sonora em particular. Teria de ver novamente o filme. Porém, gosto muito da banda-sonora que elaborou para a nova versão de Solaris.

Qual é para ti a dimensão do impacto do Nortec Collective e da Static Discos [n.r.: a label de Tijuana que Corona gere em parceria com Ruben Tamayo e DJ Ejival] na evolução da electrónica Mexicana?

Imenso, já que ambos foram muito importantes e motivo de inspiração para outros criadores no México, e não me refiro apenas a músicos. O Nortec Collectic demonstrou ser possível surgir com algo apelativo à escala local e global. Além disso, tornou-se viável que algo da nossa autoria encaixasse na cena global. Era um projecto bastante inclusivo de início, na medida em que convidava artistas de várias áreas a enriquecer o conceito estético Nortec. A Static Discos foi até certo ponto responsável pelo boom de labels independentes e pela forte adesão ao DYI, que despoletou no México de há quatro anos para cá.

Algum disco de Terrestre na Forja?

Não sei ao certo que fazer com Terrestre neste momento. Estou a reavaliar a minha relação com esse projecto.

Quando estive no México surpreendeu-me o tamanho absurdo das lombas [n.r.: algumas são verdadeira réplicas de pirâmides]. Que explicação tens para isso?

[risos] Verdade. Tal como tinha dito, os símbolos no México são de maior importância que a sua função. A palavra “lomba” [n.r.: “tope” em espanhol do país centro-americano] é bem mais importante que as suas dimensões.
Miguel Arsénio
migarsenio@yahoo.com
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