CAVEIRA / Devendra Banhart
Aula Magna, Lisboa
12 Nov 2005

Pouco passa das 9 da noite. No palco há duas baterias, uma por cima de algo e outra em baixo. O trio de free-rock lisboeta CAVEIRA entra em palco. Metade do público não faz ideia do que se passou, pagou para ver Devendra Banhart, “o novo Dylan”, “o novo Drake”, “a salvação da folk” ou o que quer que seja. Ninguém parte cadeiras nem a Aula Magna é demolida, mas quase. Há uma força demolidora por detrás de tudo, dividida em três partes (por ordem decrescente de demolição pura): a bateria de Joaquim Albergaria, a guitarra de Rita Vozone e a guitarra de Pedro Gomes. É tudo improvisado, riffs de guitarras e melodias que podiam ser ultra-catchy (especialmente vindas da guitarra de Pedro Gomes) são atiradas para o ar mas com um twist: raramente se volta a elas.

CAVEIRA © Carin Abdulá

Pedro Gomes disse, em entrevista ao suplemento Y, que um concerto dos CAVEIRA era como o final de um concerto de outras bandas (ou algo parecido). E isto é totalmente verdade. Ruído, barulho, improviso, feedback, melodia, um som avassalador, uma bateria poderosíssima, há guitarras que batem no chão, há entrega em palco (especialmente no delírio orgásmico de Pedro Gomes, que vai mexendo os pés, que se põe de joelhos de frente para o amplificador e na dança sentada na bateria de Albergaria) no fim há um riff límpido sem distorção (as duas guitarras tinham distorções diferentes e era perfeitamente discernível o que cada uma delas fazia, mesmo quando havia um entendimento quase telepático entre os dois) e uma geral apatia do público que não sabe o que está a ver. Assim, o público ou tapa os ouvidos, ou se vai embora, ou se deixa de tretas e faz os chamados “cornos do metal”, levantando o indicador e o dedo mindinho com as mãos fechadas, e abanando a cabeça em jeito de headbanging.

Não há comunicação entre a banda e o público, tirando um aceno de mãos no final, depois de Joaquim Albergaria se levantar e atirar as baquetas para o chão, indo-se embora, restando apenas as duas guitarras. Algum tempo depois vão-se embora e muita gente grita “boo” e bate palmas apenas por a banda se ter ido embora. É esta a diferença entre Devendra Banhart e outros artistas que apelam ao chamado “mainstream do alternativo”: Devendra não perde o contacto com a cena que o acarinhou e o trouxe ao mundo, utilizando o seu sucesso para dar a conhecer os artistas de que gosta ou os seus amigos, num espírito de comunidade. E agora, com uma nova vaga de bandas de música exploratória em Portugal, é óptimo que uma possa subir ao palco da Aula Magna, mesmo que isso não se traduza num alargar do seu público. Assim, aconteceu um pouco do que tinha acontecido no festival Sudoeste (onde, aliás, Devendra também actuou) quando James Murphy dos LCD Soundsystem trouxe todas as bandas que podia trazer da sua editora DFA, incluindo os Black Dice, que suscitaram um êxodo generalizado (de todos menos os que sabiam o que aquilo era e os pastilhados, mas mesmo esses últimos não ficaram até ao fim) da tenda onde se encontrava o palco secundário do festival.

CAVEIRA © Carin Abdulá

Este espírito de comunidade e, especialmente, de “família”, está presente nos Hairy Fairy, a banda que Devendra Banhart trouxe. Tem membros dos Espers, dos Vetiver (dos quais Banhart também faz parte) e dos Pleased. Todos eles são óptimos músicos e complementam bem as canções de Devendra, e todos parecem saídos de uma comuna neo-hippie. Mas, para quem tem fama de não tomar banho, Devendra aparece em palco vestido com uma camisa com as fraldas para dentro das calças, uma gravata, um colete, um blazer, umas calças à boca de sino e umas botas de salto alto. Não mostra, para além das mãos e do pouco da sua cara que não está coberto pelo cabelo grande e ondulado e pela barba, qualquer pele. Isto para alguém que costuma aparecer de tronco nu é estranho. Talvez seja do frio, do Inverno. Ou talvez o rapaz esteja a crescer. De qualquer forma, a sua voz está cada vez melhor, especialmente ao vivo. E é aí que a sua voz mais se evidencia (já nem vale a pena falar daqueles que dizem que o rapaz não sabe cantar, já que esses parecem ser ainda mais dementes do que ele, o que é difícil).

A banda parece que está num baile de finalistas, com arranjos que remetem para a pop (muitas vezes sem o rock) dos anos 60 e 70, e cada tema vai mudando ao vivo, de vez para vez. As canções têm sempre arranjos novos, tempos diferentes, novos pormenores que são retirados ou adicionados. Os temas de Cripple Crow são, naturalmente, os que funcionam melhor com uma banda, já que parecem ter sido compostos mesmo assim. Os de, por exemplo, Rejoicing in the Hands ou Niño Rojo, baseados quase apenas na voz e na guitarra de Devendra, não são tão adequados para o formato banda.

As pessoas conhecem as canções, as magníficas canções de Devendra, cujo talento reside, para além da voz, na sua capacidade incrível de escrever canções, letras, melodias, tudo. Descobre-se, ao vivo, que “Dragonflys”, uma canção que em disco é abortada, não é uma canção em si mesma, mas sim uma parte de “Mama Wolf”. Não se sabe porque é que em disco não estão juntas, mas ao vivo fazem todo o sentido, apenas com o defeito de não existir o dueto de voz masculina-feminina que lhe dá uma graça especial. Com os arranjos diferentes, canções de Cripple Crow que remetiam para os Beatles, como por exemplo “Heard Somebody Say”, perdem ao vivo (especialmente sem o piano) muito do que fazia remetê-las para essa banda. O que não é necessariamente mau, pois não há um singalong à la “Hey Jude” na parte de “aaaah-aaaah” nem há isqueiros no ar contra a guerra como haveria noutros concertos com o mesmo tipo de público. Devendra agradece aos CAVEIRA, dizendo que é uma das bandas preferidas dos Hairy Fairy, deste universo e de todos os outros.

Por detrás de Noah Georgeson, o tal dos Pleased que toca guitarra maioritariamente eléctrica e de Andy Cabic, dos Vetiver, que toca guitarra maioritariamente acústica, há dois songwriters cujos talentos Devendra quer mostrar ao mundo. Por isso, dá-lhes sempre oportunidade ao vivo de mostrarem as suas canções. Resultam bem, talvez melhor da parte de Andy Cabic, que é quem mais se aproxima à folk e ao espírito de Devendra (não é à toa que Devendra faz parte dos Vetiver). Devendra acredita, por alguma razão inexplicável, que há songwriters dotados no seu público, pelo que convida sempre alguém para vir mostrar as suas canções. Calhou um rapaz que fez uma versão banal e muito mal conseguida de “Masters of War” de Bob Dylan, cuja voz, para além de não se aproximar em nada ao registo original, era irritante. Enquanto este está a chegar ao palco, Devendra pensa na canção mais curta que tinha para tocar, e toca, à pressa, “The Beatles”, sozinho com a sua guitarra, no único bom momento deste momento do concerto.

É chamado ao palco um tal Norberto, para adicionar uma guitarra acústica a “Lazy Butterfly”, que na sua versão original tem uma sitar. Funciona bem ao vivo. A banda vai saindo, voltando, deixando Devendra sozinho com a guitarra acústica, improvisando versões de Oasis (banda pela qual tem certamente um fetiche estranho), mostrando a sua voz incrível, criando artificialmente alguma da intimidade que existia em Rejoicing in the Hands e Niño Rojo. Quando volta a banda, traz os três membros dos CAVEIRA que se sentam no chão tocando maracas e abanando-se de um lado para o outro, quais crianças, enquanto Devendra vai cantando sobre animais. É aí que a tendência neo-hippie do espectáculo está mais à tona, onde os conceitos de “comunidade” e “família” se juntam. Há momentos quase-rock’n’roll, com “Long-Haired Child”, que tem Devendra a dançar e a mexer os pés, há “Fall” com um novo arranjo que mete o público a cantar a parte de “Whoa-whoa-whoa-whoa”, há “Little Boys” e o seu riff de baixo no meio e há dois em encores, o que perfaz um total de quase 2 horas de concerto.

A “família” subiu ao palco da Aula Magna, os lisboetas foram vê-la e quase certamente irão vê-la sempre. Isso não é necessariamente mau, Devendra dá sempre bons concertos, mesmo que este não tenha sido transcendental e traz sempre todos os seus amigos. Há sempre partes diferentes, os arranjos vão mudando, as canções continuam as mesmas e isso só comprova a sua força. A sua voz vai ficando cada vez melhor, tem um sentido de humor infantil mas com piada (não chega a tocar “Santa Maria da Feira” mas rima “CAVEIRA” com “Santa Maria de la Feira”), mostra-se um verdadeiro entertainer e alguém que não desilude. Vai voltar milhares de vezes, vai viver para a casa que os Lamb, os Guano Apes, o Ben Harper e agora, mais recentemente, Antony & The Johnsons partilham algures em Lisboa, mas não parece que irá acalmar. E irá, ao contrário destes artistas mencionados, ser sempre diferente, estar constantemente a mudar. Enquanto isso acontecer, é ir vê-lo, não há nada melhor para fazer.

· 12 Nov 2005 · 08:00 ·
Rodrigo Nogueira
rodrigo.nogueira@bodyspace.net
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